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Arremedos

Gislaine Marins

O papagaio aparecia todas as noites no picadeiro do circo e dizia, de maneira clara e com pronúncia perfeita: "capitão, capitão, capitão!" O público, acostumado com manifestações bem mais simples desse tipo de ave, não podia deixar de maravilhar-se que não se limitasse a dissílabos como "loro" ou um assobio dirigido às moças na arquibancada. A piada terminava com o relato de que o dono do circo anunciara um evento ainda mais espantoso. Os bilhetes se esgotaram e, no ponto alto da noite, o picadeiro iluminou-se com a dupla. Então o capitão disse: "louro, louro, louro".
Os arremedos tornaram-se uma enfermidade nacional. Os ensaios de uma "noite dos cristais" provinciana são um espetáculo mais assombroso porque os seus atores não sabem sequer que os seus crimes são análogos aos que deram início à perseguição dos judeus na Alemanha, na noite entre 9 e 10 de novembro de 1938. Que trágica semelhança, que triste coincidência a marcar o nosso calendário.
O que é esse papagaiar bárbaro, fanático, contra os vizinhos, contra os conterrâneos, contra as instituições, contra a Constituição, contra a democracia? Onde vamos parar com os gritos tentando ocupar o lugar da razão e as mentiras tentando usurpar o lugar dos fatos? Onde estamos, prezados cidadãos? Em um arremedo grotesco dos piores momentos da história mundial? Que tragicomédia vocês estão tentando mostrar ao mundo? Cadê o palhaço que uma atriz elevada ao primeiro escalão de governo evocava para distrair e fazer sorrir a plateia?
Ou será que o diretor de cena considera mais impactante o teatro da vida com as ambulâncias impedidas de socorrer as pessoas? Ou será que é mais sensacional impedir a realização de transplantes? Ou causará mais emoção experimentar provocar o desabastecimento das cidades? Ou será que a apoteose é a encenação de um culto de imolação diante das forças militares?
O arremedo parece não ter fim. A doença não dá sinais de abandono do nosso corpo social. Podem as ruas serem esvaziadas, pode a vida retomar o seu ritmo, mas as sequelas aí estão: as sequelas de um mal gravíssimo, a ser curado com anos de conhecimento, informação, e princípios elementares de moral e cívica. A terapia passa, como sempre, pela escola: não para doutrinar, mas para salvar do vexame. Para que as pessoas tenham pelo menos as noções básicas de história, a fim de que não saiam à toa na vida.
Até a banda já passou. E não cantou coisas de amor, mas atestou que tudo correu como previsto, dentro da lei. Respeitável público, é hora de ir para casa. O sonho acabou. O pesadelo também. Temos muitos problemas pela frente, aquilo que comumente as pessoas chamam de vida.
Façam planos para o próximo ano: de emprego, de educação, de moradia, de amor. É mais proveitoso. É construtivo. Faz a gente dormir com a consciência em paz. E não depende de partido ou posição política. Depende da nossa honestidade intelectual, do nosso respeito pelos outros, de amor próprio, de empatia, da nossa vontade de viver com os outros, na mesma comunidade, no mesmo país, no mesmo mundo. Não é preciso mentir e destruir para ter um lugar no mundo: é preciso aprender a conviver. Espero que as pessoas aprendam logo, pois a vida é curta. E quando a gente menos espera os holofotes desligam e a ilusão chega ao fim. A realidade se mostra em toda a sua dramacidade. Corram.

 

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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