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Acima da inflação, mas ainda insuficiente

Miguel Debiasi

O problema do salário mínimo não pode ser resolvido separado das considerações éticas-sociais que compõem o contexto dos operários e da sociedade contemporânea. Os sistemas de trabalho adotados definem uma civilização, bem como, de sua qualidade de vida. Este é o princípio fundamental para abordar o problema do salário em nosso país.

O teólogo italiano, São Tomás de Aquino (1225-1274) considerava dois aspectos fundamentais referente ao trabalho: segundo sua utilidade e segundo seu fim natural. Em razão de sua utilidade, o trabalho é análogo a uma mercadoria; segundo o seu fim natural, o trabalho é um meio dado ao homem para a conservação e o desenvolvimento de sua personalidade. O trabalho como mercadoria está submetido às leis econômicas do valor; como meio pessoal, subordina-se às condições éticas da justiça social. Como adverte o Papa Pio IX na encíclica Divini Redemptoris, tem por função impor aos membros da comunidade tudo quanto é necessário ao bem comum.

O problema do salário não corresponde apenas ao valor da utilidade do bem produzido, não é apenas mercadoria produzida, mas condição de dignidade ética e social das pessoas. O salário recebido pelo trabalho corresponda ao essencial para a satisfação das necessidades dos trabalhadores iniludíveis. A paga do trabalho não deve ser postergada em prol do interesse do sistema econômico. O salário deve ser mensurado na medida ou nos princípios da justiça distributiva e social, isto é, não pode ser sinônimo de sacrifício de dignidade humana.

Na visão de São Tomás de Aquino e do Papa Pio IX a paga pelo trabalho não deve somente suprimir as necessidades materiais do trabalhador, mas ao mínimo de satisfação subjetiva, de um objetivo de condições de ter de vida digna. Quanto a Igreja fala em vida digna dos operários, está afirmando os vários aspectos da vida, tais como habitação, alimentos, diversão, cultura, segurança e outros. Cabe ao Estado o absoluto papel em assegurar essas condições, promovendo o equilíbrio harmônico entre os cidadãos e uma existência útil à coletividade.

A proposta do governo federal de elevar a reposição salarial acima da inflação provocou a resistência dos liberais brasileiros recorrendo a Adam Smith (1723-1790), filósofo e economista escocês e pai do liberalismo econômico, para justificar a oposição ao decreto de reajuste do salário. Os liberais brasileiros argumentam nessa perspectiva: “salário mínimo não deveria nem existir. Como ensinou Adam Smith, deveríamos deixar a mão invisível (oferta e procura) agir livremente para determinar os salários, gerando o bem-estar geral”. Ou seja, sem a regulação por parte do governo.

Com o abandono do grande acordo da política de valorização do salário mínimo aprovado em 2002 voltou-se a velha disputa de classe: “Os trabalhadores desejam ganhar o máximo possível, os patrões pagar o mínimo possível. Os primeiros procuram associar-se entre si para levantar os salários do trabalho, os patrões fazem o mesmo para baixá-lo”. E, não é difícil saber quem historicamente venceu a disputa.

O filósofo, economista, historiador, sociólogo, teórico político, jornalista e revolucionário socialista o alemão, Karl Marx (1818-1883), diz que o salário é um dos pilares de sustentação da sociedade capitalista. Esta sociedade cria ilusões fantasmagóricas por todos os seus lados, dentre as quais a categoria salário que consiste em uma das mais importantes formas de encobrir e mistificar a realidade do processo de produção capitalista. O salário consiste num importante pilar da exploração ao trabalhador, pois sobre sua base se levanta um mundo encantado de aparências e ilusões. Para Marx, define essa situação como o fetiche em forma de salário.

Em nosso sistema econômico o salário aparece como preço do trabalho. O salário recebido desperta no trabalhador enquanto vale o seu trabalho, parecendo ser uma troca de equivalentes, na qual os dois valores defrontam e se equivalem. Essa compreensão forja uma ilusão na qual a troca entre não-equivalente aparece como uma troca entre equivalente. A ilusão de que o salário regula uma troca entre equivalentes, se fundamenta de que o recebido é o preço correspondente ao valor do trabalho realizado. Mas com o retorno da política de valorização pode a longo prazo superar o fetiche ou desmistificar o salário.

Em 2002 deu-se início a uma política de valorização do salário mínimo que na época ficou definido em U$ 200 dólares. Segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) essa política de valorização do salário mínimo trouxe aumento real em todos os anos de 2003 a 2016. A política de valorização do salário foi um dos fatores mais importantes para o aumento da renda da população mais pobre e marca o sucesso de uma luta que promove um grande acordo salarial na história do país.

Para o Dieese a política de valorização selada pelo acordo salarial estabeleceu regra estável, permanente e previsível, promovendo a recuperação gradativa e diferida no tempo, com referência para os aumentos reais e estímulo ao crescimento da economia. A política de valorização do salário mínimo induz à ampliação do mercado consumidor interno e, em consequência, fortalece a economia brasileira. Com base no Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), em janeiro de 2017, o reajuste ficou abaixo da inflação, acumulando perda real de 0,10% no período de um ano e em 2018, a perda real acumulada foi de 0,25%.

Em janeiro de 2024, o salário mínimo oficial do Brasil ficou em R$ 1.412, o ganho real chegou a 5,77%, conforme calculou o Dieese. O aumento nominal é de 6,97%, enquanto o INPC está estimado em 1,14%, de maio a dezembro. O reajuste ficou acima da inflação, já um bom sinal, mas ainda estamos longe de um salário ideal.

Nós assalariados, resta-nos torcer que a política de valorização do salário continue sendo implementada, construindo uma civilização que valoriza as condições éticas e sociais dos trabalhadores, famílias e patrões. Enfim, que o sistema de trabalho defina para o princípio fundamental, para o bem da civilização, e que sua paga ou salário deixa de ser um problema ético e social em nosso país.

 

Sobre o autor

Miguel Debiasi

Frade da Província dos Capuchinhos do Rio Grande do Sul. Mestre em Filosofia (Universidade do Vale dos Sinos – São Leopoldo/RS). Mestre em Teologia (Pontifícia Universidade Católica do RS - PUC/RS). Doutor em Teologia (Faculdades EST – São Leopoldo/RS).

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