Que tal um golpe de democracia?
A origem do conceito – como não poderia deixar de ser – é francesa: Coup d’État. Dito assim, com a suavidade gaulesa, até parece uma coisa bonita, elegante, delicada: Coup d’État! Em português, foi traduzido literalmente: Golpe de Estado. Os ingleses, na sua mania de praticidade, nem se deram ao trabalho de traduzir a expressão para seu idioma. Utilizaram a versão francesa de modo que, em inglês, Golpe de Estado também se diz Coup d’État. De um lado e de outro do Canal da Mancha – ou do Atlântico, se preferirem – um Coup d’État é um Coup d’État. Já do outro lado do Reno, lá onde se fala a língua germânica, Golpe de Estado pode ser dito de duas formas. A mais breve, utilizada quando tudo acontece em poucas horas e sem muito sangue, diz-se Putsch. Rápido assim, quase que deslizando entre os dentes: Putsch! Já quando é violento, dura semanas, meses e tem como consequência a destruição de muitos bens e de muitas vidas, a palavra é bem mais solene e aterradora: Staatsstreich. Só de ouvir já dá medo! Em russo também soa assustador: gosudarstvennyy perevorot! Não sei se a sensação ao ouvir a expressão russa é de frio ou de ebriedade! Mas que é pesada, não há dúvida.
Mas voltemos ao sentido da expressão. Ela foi inventada por Gabriel Nodé no ano de 1639. Em sua obra Considerations politiques sur les coups d'Etat definiu o Golpe do Estado como a derrubada ilegal, por parte de um órgão do Estado, da ordem constitucional legítima. A primeira e a terceira parte da definição se relacionam entre si e são fáceis de entender. Golpe é quando alguém ou um grupo, de forma ilegal, toma o poder contra a lei e implanta uma nova lei. O detalhe importante na definição de Nodé está no elemento intermediário, ou seja, Golpe mesmo, no sentido estrito da expressão, acontece quando esta ruptura da ordem institucional e legal é feita por alguém que faz parte da estrutura do poder de Estado. Se só estivessem presentes o primeiro e terceiro elemento, Golpe poderia ser confundido por Revolução. Por isso os teóricos políticos do século XVII e XVIII aprofundaram o tema e explicitaram o implícito em Nodé: as Revoluções são as transformações da ordem institucional que vem de fora da estrutura do poder estatal. Revoluções acontecem quando pessoas ou grupos que nunca fizeram parte do Estado tomam o poder do Estado. Foi o caso da Revolução Francesa de 1789 onde a burguesia que não fazia parte do aparato estatal subverteu a ordem vigente e tomou o poder. O mesmo aconteceu na Revolução Russa de 1917 e em outras tantas revoluções populares que derrubaram sistemas oligárquicos de poder que excluíam do Estado a classe trabalhadora. O mesmo pode-se dizer da irrupção das mulheres nas democracias ocidentais no séc. XIX.
Voltando aos Golpes de Estado, eles podem dar-se de várias formas. O Golpe clássico, tão conhecido por nós latino-americanos, é aquele em que os militares – um poder do Estado – intervém destituindo a autoridade vigente e instalando em seu lugar outras pessoas ou grupos para exercer o poder. Mas existe também o autogolpe. Nele, o Presidente ou o Rei fecha o Parlamento e o Judiciário e torna-se a única autoridade da Nação. Foi o que aconteceu, por exemplo, no Peru no ano de 1992, quando o então Presidente Alberto Fujimori, com o apoio das Forças Armadas, dissolveu o Parlamento e interveio no Judiciário. Existe também o Golpe Parlamentar quando o Legislativo, à margem da Constituição, utiliza sua força para depor um Presidente legitimamente eleito. É o que vem ocorrendo nos últimos tempos na América Latina com a deposição do Presidente Lugo no Paraguai em 2012 e com a Presidenta Dilma em 2016 no Brasil. E existe ainda o Golpe Judiciário quando este poder do Estado em sua máxima expressão, o Supremo Tribunal Federal, utiliza a interpretação da Constituição para destituir ou impedir alguém de assumir o poder. É o que aconteceu no Equador com o ex-Presidente Rafael Correa em 2016; com o ex-Presidente de El Salvador, Mauricio Funes, também em 2016; no Brasil, com o ex-Presidente Lula neste ano de 2018 e possivelmente, acontecerá com a ex-Presidenta Cristina Kirchner na Argentina. Este último modelo de Golpe é o Golpe 3.0 em que o Judiciário age com o apoio das polícias e dos Meios de Comunicação que, na maioria dos países, também são uma concessão do Estado.
Depois disso tudo, passo a explicitar a minha proposta de “Golpe de democracia”. E no Brasil ele é necessário e, a meu ver, viável. A Constituição de 1988 que rege a atual vida política brasileira, em seu Art. 1º, parágrafo único, afirma: “todo o poder emana do povo, que exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta constituição”. No caso das eleições, através do voto, esse instrumento da democracia representativa previsto na Constituição, os eleitores podem alijar do poder, por via pacífica, as elites e seus representantes que se apossaram do Estado – no Executivo, Legislativo e, sobremaneira, no Judiciário – e usam-no para manter a população e as riquezas do país sob o seu controle. Por isso, é preciso votar. Nada de abster-se, anular ou votar em branco. E é preciso votar distinguindo claramente quem faz parte da elite e quem faz, realmente, parte do povo. Analisar quais são os partidos que sempre votaram em defesa dos 1% que detém a maior parte da riqueza nacional e os que sempre votaram a favor da imensa maioria que vive no limite da pobreza e dos miseráveis da nação.
Se não fizermos essa mudança radical pelo “golpe democrático”, talvez em breve tempo tenhamos que fazer não um golpe, mas uma revolução democrática. E as revoluções sempre são muito mais sangrentas e custosas que os golpes. Mas elas se tornam inevitáveis quando os “golpes democráticos” não funcionam.
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