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Pompeia nasce da morte

Gislaine Marins

A erupção do Vesúvio no ano de 79 d.C. destruiu uma sociedade abastada e florescente. Por muito tempo, acreditou-se que a cidade tinha sido coberta de lava em agosto, mas pesquisas recentes revelaram que a tragédia ocorreu em outubro ou novembro. Trata-se de uma informação importante para a ciência, embora não mude o destino final: Pompeia hoje vive da sua morte.
Vive como memória: descrita nos livros de história, narrada nos romances, cantada em poemas. Vive como advertência perene dos perigos de uma nova e imprevista erupção. Vive para recordar por meio dos corpos carbonizados e dos objetos cristalizados que não existe tempo perdido, se existe conservação. Vive para ensinar a não morrer em vão, se recebemos tantos avisos.
Há uma nova Pompeia hoje, cujos moradores entrelaçam suas existências com o medo vivo. Às vezes, parece ousadia, às vezes resignação, mas também pode parecer obstinação e inconsciência. Nesse arraigamento à terra há algo profundamente humano, do qual podemos discordar com as boas razões da ciência e compreender com a complacência diante do desejo irrefreável que impulsiona as pessoas a desafiarem as forças da natureza. O vulcão também vive e mantém o seu poder de destruição intacto graças à presença humana, que, minúscula, transforma-o em um gigante. Se estivesse em uma zona remota e desabitada, o Vesúvio seria apenas mais um vulcão a testemunhar a vitalidade natural do nosso planeta. O que distingue este vulcão são as pessoas, mortas e vivas, que há quase dois milênios o mantêm ativo e aterrorizante.
Na nossa humilde e pequena história, com apenas meio milênio de formação como sociedade colonial e mais tarde como tentativa de Estado plural e mais recentemente ainda como desejo frustrado de alcançar uma democracia consolidada, também tivemos a nossa pequena tragédia vulcânica tropical, simbolicamente destruidora. No Planalto Central, o fenômeno assusta e se agiganta graças ao medo que infunde e à atração que suscita. A lava escorreu rápida, graças à avalanche de fake news, e acelerou o nosso naufrágio em uma espécie de chumbo líquido da insensatez. Às vezes tenho a sensação de falar com os simulacros dos amigos, com as sombras dos que só existem realmente nas lembranças de outros tempos. Às vezes parece que estamos cobertos de cinzas: cinzas entram pelos nossos ouvidos e cinzas saem da boca.
Apesar disso, tudo renasce. Como Pompeia desenterrada séculos mais tarde. Por isso nossas palavras não são vãs: cada apelo que se ergue da lava resta impresso no tempo. Haverá arqueólogos da dignidade para resgatarem no futuro o período que massacrou tantas vidas. Haverá um dia a tecnologia capaz de colocar a ética acima dos interesses financeiros deste triste presente. O Brasil também renascerá das suas mortes: quando tivermos a capacidade de respeitar o valor da vida, fazendo escolhas individuais e coletivas à altura da dignidade inviolável de cada pessoa.
Seria melhor, e mais sábio, valorizar o tempo aprendendo as lições do passado. Mas não é assim: não é humano, se não é falível. Resta, portanto, a dor e a tristeza pela constatação das perdas inúteis, em nome da manipulação, do poder e da maldade. Contudo, o nosso outubro e o nosso novembro também chegarão para colocar os fatos no seu devido lugar. Nesse dia, nós ou os descendentes arraigados teimosamente à vida e à verdade poderão retificar o que hoje é construído e questionado para enterrar as nossas esperanças, como se o vulcão pudesse determinar vida, morte e peripécias de uma nação inteira. Não pode, pois nenhum vulcão se torna Vesúvio, se é apenas um homem.
 

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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