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Os “vencidinhos”

Miguel Debiasi

“O amado comeu e bebeu, se alargou, engordou e recalcitrou” (Deuteronômio 32,15). Honra e abundância pode ser concedida em favor do bem da humanidade, conservando íntegro o projeto de Deus. Honra e abundância estão associadas à conduta virtuosa e veneradas em tudo. Esses preceitos deveriam estar inscritos na largueza da consciência cristã.

Os estudiosos concordam em que, para se compreender a filosofia de um povo e de uma civilização, é necessário fazer referência a três coisas: a arte; à religião; às condições sociopolíticas. A arte de modo mítico e fantástico construídas pela grande intuição e a imaginação, tende alcançar objetivos esclarecedores que também são próprios da filosofia. A religião por meio de representações simbólicas e pela fé alcança certos objetivos que a filosofia procura atingir com a razão. As condições socioeconômicas e políticas frequentemente condicionam o nascimento das ideias e da própria filosofia. Explicamos melhor as três coisas.

Iniciemos pelo primeiro ponto, da arte. Os poetas sempre tiveram uma grande importância na formação humana. Os Sábios poetas encontram-se em todos os povos. Na Grécia Antiga, encontra-se Homero (850 a.C.), autor das obras-primas Iliadas e Odisséia que narram as aventuras dos heróis gregos da guerra de Troia. Esses poemas homéricos tiveram grande influência na literatura ocidental. A característica dos poemas clássicos é apresentar a realidade em sua inteireza, envolvendo deuses e homens, céu e terra, guerra e paz, bem e mal, alegria e dor, vida e morte, entre outros. Os poetas da Grécia Antiga são mestres nessa narrativa.

O segundo elemento para compreender a gênese da filosofia de um povo e de uma civilização, é a religião. Os sábios gregos faziam a distinção entre a religião pública e a religião dos mistérios. A primeira, a religião pública, que constitui o ponto de referência em que tudo é divino, porque tudo se explica em função da intervenção dos deuses: os fenômenos naturais são promovidos por Numes; os raios e relâmpagos são arremessados por Zeus do alto do Olimpo, as ondas do mar são provocadas pelo tridente de Poseidon, o sol é levado pelo áureo carro de Apolo e assim por diante.

Mas nem todos os gregos consideravam suficiente a religião pública, por isso desenvolveram a dos mistérios. Na religião dos mistérios, estão o órficos ou orfismo que derivam do nome do poeta trácio Orfeu. O orfismo é importante porque introduziram na civilização grega um novo esquema de crenças e uma nova interpretação da existência humana. O orfismo pôs fim à ideia do homem como mortal, proclama a imortalidade da alma e concebe o homem segundo um esquema dualista que contrapõe alma e corpo.

As condições sócio político-econômico é a terceira coisa que explica a filosofia de um povo e de uma civilização. Nessa os gregos se beneficiaram em relação ao outros povos e desfrutaram da liberdade e da não obediência ao poder religioso e político. Com a constituição da polis, isto é, da Cidade-Estado, os gregos sentiram-se livres e elevados ao estado de cidadãos. Para os gregos, o homem coincide com o cidadão, isto é, aquele indivíduo que participa da Cidade-Estado. A cidade-Estado, ou simplesmente, o Estado, tornou-se o horizonte ético para o cidadão, para o homem grego. O cidadão compreendia o bem do Estado como o seu próprio bem. Dessa forma, o cidadão sentia a grandeza do Estado como sua própria grandeza.

No Brasil de Bolsonaro os Supermercados das grandes capitais vendem produtos alimentícios até então considerados descartados, como feijão partido, soro de leite com misturas concentradas, carcaça, pele e pé de frango, cabeça de peixe, restos de frios, pedaços de queijo mofados. Agora com venda autorizada desses produtos até poucos anos considerados descartados são colocados para comercialização como os “vencidinhos”. Com a disparada dos preços, alta inflação, desemprego, crise econômica o Brasil, entrou para o Mapa Mundial da Fome e os brasileiros submetidos ao risco da insegurança alimentar, afirma a reportagem do Jornal Folha de São Paulo.

Pela arte, religião e política os gregos constituíram a Cidade-Estado, a filosofia e a cidadania. O Estado como uma organização do bem-estar dos cidadãos, espaço de promoção da arte, da religião e da política. No Brasil de Bolsonaro arte, religião e política favorecem aos setores da nobreza fundiária e comercial e oficializa o sacrifício para seu povo que vai ao supermercado mal consegue adquirir produtos vencidos, alimento considerado descartável.  

“O amado comeu e bebeu, se alargou, engordou e recalcitrou” (Deuteronômio 32,15). Este texto bíblico refere-se à experiência do povo de Israel, o povo hebreu, que estabelecido em terra livre desfruta de suas posses esquece-se de Deus, aquele que o libertou da escravidão do Egito. Para nós cristãos, o povo de Israel é como um espelho da civilização. Pela sua história identificamos a nossa contemporânea. Como se vê as atitudes humanas incorretas que enfraquecem os princípios éticos que compõem a vida livre e digna. Na história do povo de Israel não faltaram profetas que denunciaram à arte, religião, a política alheia à realidade humana. Como se não bastasse, em muitas oportunidades assumiram o papel de fortalecer o poder à custa da dor e do sofrimento dos mais fracos e indefesos (Neemias 5,1-5).

Submeter-se a triste situação de consumir alimentos vencidos não faz parte do projeto de Deus que elegeu o povo de Israel para ser o espelho da humanidade digna e justa. O milagre da multiplicação dos pães e peixes realizado por Jesus por compaixão da multidão faminta, indica que honra e abundância é dom de Deus para toda multidão humana, inclusive a de hoje (Mateus 14,22-36).

 

Sobre o autor

Miguel Debiasi

Frade da Província dos Capuchinhos do Rio Grande do Sul. Mestre em Filosofia (Universidade do Vale dos Sinos – São Leopoldo/RS). Mestre em Teologia (Pontifícia Universidade Católica do RS - PUC/RS). Doutor em Teologia (Faculdades EST – São Leopoldo/RS).

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