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O florescimento do cinismo?

Miguel Debiasi

Na história da civilização são poucos os eventos históricos que, por sua relevância e suas consequências, apontam de modo emblemático o fim de uma época e o início de outra. Em nosso meio alguns teóricos dizem que estamos no fim de uma era e em mudança de época, referindo-se a uma possível passagem da modernidade para a pós-modernidade. Parece-nos que no momento este é um assunto controverso. Mas há quem constate que estamos em tempo do cinismo. A constatação leva-nos a perguntar: Seria um sinal de mudança de época? Início de uma nova era? Ou é engano daqueles que constatam a existência do cinismo? Ou talvez de outro movimento até agora não totalmente posto e esclarecido.    

Iniciamos respondendo as perguntas dizendo que o cinismo não é fenômeno contemporâneo. O cinismo já foi tema de debate da Antiguidade. Na Grécia Antiga surgiu o movimento filosófico do cinismo. Mas há muita diferença entre o movimento filosófico do cinismo grego com a ideia contemporânea. As diferentes compreensões são evidentes e contrapostas. Na atualidade os que constatam haver uma sociedade cínica, referem-se à questão da falsidade, da hipocrisia das pessoas. Estes entendem que a falsidade afronta às convenções e as conveniências sociais e morais. Esta constatação é correta, ainda que não seja possível sua generalização.

O movimento do cinismo da Antiguidade, o da Grécia Antiga, tinha outra finalidade, repudiar toda ideia e convenções sociais e morais que não levavam ao verdadeiro sentido da vida humana, a mais humilde/simples e natural possível. Os filósofos do cinismo repudiam todos os ordenamentos sociais e as circunstâncias degradantes para a sociedade grega. Estes filósofos acreditavam que a felicidade estaria relacionada a uma vida simples, em acordo com a natureza e sem as complexidades das regras, das convenções e valores sociais. O movimento filosófico cínico apontava para uma distinção entre os aspectos naturais e os costumes humanos. Este assunto permeou todo pensamento filosófico da Grécia Antiga, que iniciou em meados do século IV a. C., fazendo até mesmo adeptos no Império Romano.

Os filósofos associados ao movimento cínico foram muitos. Os primeiros foram Antístenes, de Atenas, e Diógenes, de Sinope. Antístenes foi discípulo do sofista Górgias, que ensinava na cidade de Atenas e desenvolveu seu pensamento não condicionado aos bens externos como família, propriedade, reputação moral e social, aproximando-se de uma vida e conduta asceta. Como discípulos de Antístenes, Diógenes foi mais longe no pensamento e aos extremos do comportamento social e moral. Crítico dos costumes e virtudes apreciados pela na Grécia Antiga, debochava e ridicularizava as pessoas em seus hábitos cotidianos e os que se consideravam sábios. Diógenes adotou os aspectos naturais do ser humano como modelo de vida virtuosa, vivia nas ruas, sem manter higiene e pedia esmola. Em pleno meio dia sai com uma lamparina em mãos procurando o ser humano, como uma crítica a artificialidade dos costumes da sociedade.

O movimento filosófico cínico teve outros adeptos como Crates, de Tebas, que distribuiu sua herança e viveu nas ruas de Atenas. Zenão tornou-se seu discípulo, tido como pessoa calma e pensativa provocava extravagâncias em ambientes públicos. Esses filósofos destacavam-se pela crítica e aparências, pois andavam descalços e trajavam uma espécie de manto para cobrir o corpo. A opção social dos filósofos cínicos fez adeptos no Império Romano, Demétrio, próximo de Sêneca, que escreveu muito por admirar sua incorruptibilidade. Mesmo optando por essa condição social dolorosa com sabedoria e coragem enfrentaram as dificuldades, em prol de uma vida virtuosa. O modo de viver dos cínicos está relacionado à própria etimologia de uma palavra grega Kynikos, que remete a “cachorro”. Este posicionamento antissocial rendeu-lhe muitas críticas da parte de outros filósofos e da sociedade.

Na diferenciação do cinismo filosófico grego com o contemporâneo é preciso dizer: o cinismo da Antiguidade deixou um legado na cultural Ocidental, repudiando os falsos costumes e valores da Grécia Antiga e acreditavam numa sociedade mais natural possível e numa vida social sem posses e despretensiosa. Quando as pessoas hoje se referem ao cinismo tem outro sentido, o da pura falsidade enganando a todos com seu incoerente comportamento. Analisando a atual realidade social do Brasil o sociólogo Jessé Souza afirma: “o povo brasileiro foi primeiro enganado para depois ser assaltado”. Enganar o povo é praticar o cinismo, no sentido mais perverso, da falsidade. Despojar o povo de todas as ideias e da capacidade crítica, segundo Jessé, é cinismo praticado pela elite. A elite criminaliza as camadas populares para assaltar o orçamento público em seu próprio benefício, critica Jessé.

O cinismo da elite criou a imagem do “brasileiro corrupto” para beneficiar-se a si mesma. O auge do cinismo está no discurso de “combate à corrupção” usado pela elite para tomar poder por meio de um golpe de estado e assaltar o povo brasileiro. Concluindo a resposta às perguntas iniciais, verificam-se sinais da prática do cinismo. O discurso cínico das elites é uma constante, a história e realidade brasileira prova isto.

Quanto à constatação de entrarmos em uma “nova era”, parece-nos real que não existe evento histórico que prove isto. E se estivermos inseridos num movimento de “nova era” está mais para um processo histórico muito vagaroso, mais lento e menos letal que o cinismo.

Sobre o autor

Miguel Debiasi

Frade da Província dos Capuchinhos do Rio Grande do Sul. Mestre em Filosofia (Universidade do Vale dos Sinos – São Leopoldo/RS). Mestre em Teologia (Pontifícia Universidade Católica do RS - PUC/RS). Doutor em Teologia (Faculdades EST – São Leopoldo/RS).

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