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O caminho mais bonito

Gislaine Marins

Andar com os pés no chão também significa ter alguma noção dos séculos de história sob os nossos passos. O problema é que muitas vezes o pensamento avoa, esse verbo que é melhor do que “voar”, porque nenhum sonhador é “voado”, mas “avoado”.

“Soy latinoamericana” repito a mim mesma todos os dias: vejo um melro cantando faceiro e penso que ele é distante parente do sabiá. Vejo uma cerejeira e encontro semelhanças com as nossas pitangueiras. Vejo um pinheiro mediterrâneo com a sua copa ovalada e penso nas nossas araucárias. Só que o pinheiro mediterrâneo dá pinhãozinho e a araucária dá pinhãozão. Quem conhece as duas árvores sabe bem a diferença entre ver uma pinha mediterrânea esparramada no chão e uma pinha de araucária desabando no campo: “e nunca me engano”.

Gosto de cantar adulterando a rima assim: meu caminho pro trabalho é um pouco mais bonito. Na realidade, não é exatamente assim. Todos os caminhos são intensos. Quando inicio o meu percurso matinal, a primeira etapa é percorrer um trecho de uma das antigas artérias de Roma, a via Casilina. Nunca consigo deixar de pensar que por aqui, desde a Antiguidade, entravam muitos produtos agrícolas que alimentavam a área urbana da cidade, passando pela Porta Maior. E ainda hoje, além dos automóveis e do trem carregando gente para o trabalho, a estrada está cheia de pequenos furgões carregando os mais variados produtos. Essa também foi uma das avenidas que os soldados americanos eternizaram em fotos para comprovarem que realmente tinham entrado em Roma durante a Segunda Guerra Mundial. Nesse caminho, os aliados lançaram muitas bombas, especialmente sobre as linhas ferroviárias, e em um desses ataques um trem com passageiros foi atingido, causando centenas de mortes.

Fujo do tráfego e pego o atalho do Mandrione, um bairro com uma única rua que só pode ser percorrida em direção ao centro da cidade. A rua literalmente serpenteia o aqueduto, numa sinuosa conquista amorosa. Passa de lado, passa por baixo, dá um salto com uma pequena ponte, pula sobre a ferrovia e segue pelo outro lado de um arco. Quando atravesso a última porta, deixo para trás séculos de história encaixados nos tijolos milenares, mas também a pobreza mais recente, dos desabrigados da Segunda Guerra Mundial, que encontraram nos arcos um teto minúsculo. Hoje, essa pequena urbanização forçada e emergencial começa a respirar os ares de um vilarejo, com áreas de lazer gramadas, onde imagino no passado cobertas de rúcula, chicória e batatas para esfomear os civis reféns do grande conflito.

Apesar de fazer esse trajeto quase todos os dias, nunca tinha reparado que não muito distante daqui, a fim de evitar os congestionamentos maiores, passo por uma pequena rua de uma delicadeza impressionante: de um lado há uma fileira de ameixeiras em flor e do outro uma fileira de cerejeiras que acabaram de florescer. É uma rua em festa. Em silêncio. Sem cores aberrantes. Sem turistas. Sem monumentos. Sem artigos no New York Times. Sem influencer. Uma ruazinha. Um trecho de caminho que deixa feliz quem por ele passa. E que torna o meu dia mais bonito.

Eu sei que existe isso em todo lugar. De jeitos diferentes. Com sentimentos diferentes. Com corações diferentes. Com diferentes graus de sensibilidade. Sim, a sensibilidade: essa característica tão humana que nos permite olhar para as ruas e ver algo mais do que pavimentação, tráfego e velocidade. A sensibilidade é o que nos avoa, é o que nos faz sonhar.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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