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O amarelo são muitas cores

Gislaine Marins

 

Na semana passada escrevi sobre o medo, mas talvez o mais correto seria escrever sobre medos, parentes e afins. De fato, o artigo gerou comentários estimulantes e observações que ampliavam as reflexões esboçadas nas poucas linhas do texto. Os medos são um mundo.

Entre as reações a que tive acesso, algumas geraram um diálogo mais intenso, que tento nesse espaço partilhar com os leitores, a fim de estender o horizonte de observação sobre o tema tratado. A questão do medo sensibiliza muitas categorias que lidam com esse sentimento: advogados, artistas, filósofos, cientistas, sociólogos, empresários, antropólogos, políticos, sacerdotes. Praticamente não há campo de ação onde o medo não seja um fator a ser considerado. Portanto, feitas as devidas ressalvas, abro espaço para as visões de uma psicóloga e de um psiquiatra, como diferentes caminhos para as palavras já traçadas, sem ignorar que os medos podem nos conduzir por muitos outros atalhos.

Uma consideração muito estimulante foi feita pelo psiquiatra Mario Giampà, recordando o neurólogo português António Damásio, para quem “o sistema imunitário, o hipotálamo, o córtex frontal ventromedial e a Declaração dos Direitos Humanos possuem, na base, a mesma origem” (citação de O Erro de Descartes, do mesmo  autor). O cérebro, essa central de interações complexas que permite a nossa relação com o mundo e conosco mesmos, condiciona a nossa capacidade de pensar a realidade e inclusive de não pensá-la, observou lambrando as posições do psicanalista Wilfred Ruprecht Bion.

A este ponto, entra em jogo outra observação, vinda da psicóloga e psicanalista Ana Paula Melchiors Stalschmidt, que chama a atenção para o mecanismo da negação. Ela explica que “este mecanismo entra em cena quando a realidade é excessivamente ‘dura’ se comparada aos recursos do sujeito para lidar com ela: ‘é tão horrível pensar que posso encostar em um lugar qualquer em que alguém contaminado pelo coronavírus encostou, me contaminar, contaminar outros  e morrer, que prefiro pensar que não é tão grave assim’. Estamos vivendo um momento em que a realidade se apresenta particularmente angustiante e nos confronta com o que na psicanálise lacaniana se chama de Real, que é ‘o resto’, aquilo que não pode ser falado, escrito, elaborado, aquilo que não pode simbolizar”, continua.

São comentários que chamaram muito a minha atenção quando voltei a refletir sobre os medos e a pensar como somos acostumados a atribuir sentidos figurados ao que nos assusta. Desde a infância somos habituados ao bicho-papão, ao lobo mau e à versão brasileira escrita por Chico Buarque, a Chapeuzinho Amarelo. Amarelada de medo. Entre nós e a realidade há um universo que precisamos continuamente significar, questionar, descrer, explicar, enfrentar, usando os mais diferentes instrumentos que temos à disposição. Nada é óbvio.

Amarela é a cor de quem perde a coragem. É o tom dos pálidos, dos que não têm força. É a nuance dos que sorriem constrangidos. Amarelão é uma das formas populares para denominar um tipo de anemia. Por que não ficaríamos amarelados diante de um vírus que coloca em xeque a nossa concepção de ciência, as nossas crenças, as nossas inseguranças e a nossa fragilidade para enfrentar o que é desconhecido e não nos fornece respostas confortantes? Amarelar é preciso. E se isso não resolve o problema, pelo menos não esconde a questão embaixo do tapete.

Giampà menciona ainda a infosfera, a esfera virtual que está transformando as relações pessoais e o nosso ser formado por tantos fragmentos e estímulos a que somos expostos desde o nascimento. Pergunto-me: até que ponto podemos suportar a fragmentação, envolvidos em comunicações hipertextuais e intertextuais, sem cair na desorientação e no desespero? É certo, como lembra Stahlschmidt, que a idade adulta nos chama a lidar com o desamparo, mas o fluxo de informações a que somos submetidos sem adequados instrumentos para usar a tecnologia piora uma situação que a experiência de vida comporta, a falta de conhecimento acentua e a chegada de uma epidemia da dimensão que enfrentamos descontrola ainda mais.

Há textos que não terminam com respostas, mas com perguntas. Este é um deles. Não há conclusão que possa ser dada em tão exíguo espaço, sem recorrer, além disso, a uma ampla lista de estudiosos que, em diferentes setores abordaram e lidam com os nossos medos. Contudo, foi extremamente significativo ter recebido comentários tão interessantes, que pude restituir aqui apenas em mínima parte, esperando, porém, que tenham sido úteis para deixar aos leitores muitas pulgas atrás das orelhas e a vontade de superar as nossas amarelices, desencadeadas pelas mais diferentes fontes.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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