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Fraternidade e fome

Miguel Debiasi

 

“Quem tem fome, tem pressa”. A afirmação não deixa de ser uma observação sociológica de Herbert de Souza, o Betinho, feita há décadas. Fraternidade e fome, o que há de comum entre ambas? Qual divergência entre fraternidade e fome? É possível uma convergência? Fraternidade e fome é a questão proposta para a Campanha da Fraternidade de 2023.

As pesquisas do Inquérito Nacional Segurança Alimentar (Vigisan) e a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar Nutricional (Penssan) mostram o crescimento do empobrecimento no Brasil nos últimos três anos. A fome afeta diretamente 33,1 milhões de brasileiros, o equivalente a 15,5% da população. Em 2022 entraram para o Mapa da Fome mais 14 milhões de pessoas na comparação com o levantamento de 2020. São 60 milhões de brasileiros que sofrem com insegurança alimentar. A insegurança alimentar nas famílias com crianças de 10 anos passou de 9,4% em 2020, para 18,1% em 2022 e 65% dos lares comandados por pessoas pretas e pardas convivem diariamente com a insegurança alimentar ou que não têm acesso às refeições necessárias.

Quem poderia se omitir diante de uma multidão de famintos? Pessoas de bem e instituições humanas, eclesiais e filantrópicas poderiam silenciar-se e aceitar passivamente essa problemática social? A fome é inaceitável. As Associações de caridade e Organizações Não Governamentais (ONG) foram criadas e milhões de voluntários abraçaram a causa pela erradicação da fome. Nesta luta temos grandes humanistas, Herbert José de Sousa, o Betinho (1935-1997), foi um sociólogo e ativista dos direitos humanos. Em 1993 Betinho organizou o projeto Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida com o lema: “quem tem fome, tem pressa”, criando uma Rede de Solidariedade pelo Brasil ajudando a 32 milhões de famintos.

“Quem tem fome, tem pressa” é atualíssimo e a situação de quem vivia em condições de vulnerabilidade agravou-se de forma assustadora. A crise sanitária provocada pela Covid-19 aumentou a desigualdade social e econômica, lançando milhões de brasileiros abaixo da linha da pobreza. O direito humano à alimentação é lei no Brasil. A Constituição Federal de 1988, artigo 6º e a Emenda Constitucional nº 64 inclui entre os direitos sociais o da alimentação. Uma alimentação adequada, ambientes saudáveis e sustentáveis é direito de todas as pessoas. Betinho mostrou que a luta pela erradicação da fome pode mobilizar todos os brasileiros, governos, organizações, associações e igrejas.

O Conselho Episcopal Pastoral (Consep) da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) escolheu a Fome como a problemática social a ser refletida por meio da Campanha da Fraternidade (CF) de 2023. Com o tema “Fraternidade e Fome” e o lema escolhido foi “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mateus 14,16). “Dai-lhes vós mesmos de comer” é o mando de Jesus dado aos discípulos num contexto sociopolítico, sociorreligioso e socioeconômico de exploração do povo de Israel. No domínio do contexto sociopolítico e socioeconômico está o Império Romano e a família de Herodes na Galileia e no sociorreligioso os sumos sacerdotes na Judeia. O projeto dos Romanos, de Herodes e dos sumos sacerdotes levaram ao povo de Israel a pobreza e a situação de fome.

Ao contrário do projeto de morte e de exploração, a proposta do Reino de Jesus é um programa de vida e de justiça. Em pleno deserto, Jesus teve compaixão das multidões, pela sua situação de doença, abandono social e de fome (Mateus 14,14). No evento da multiplicação dos pães e dos peixes os discípulos queriam resolver a situação dos famintos na lógica do dinheiro: “Despede a multidão para que vá ao povoado comprar alimento para si” (Mateus 14,15). Para Jesus que anuncia o Reino da justiça, esta proposta é uma solução injusta para quem passa fome. A solução que Jesus propõe é bem diferente. É uma solução para a sociedade de hoje: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mateus 14,16). Cinco pães e dois peixes somam sete que no contexto bíblico sete significa totalidade, todos foram contemplados com o alimento.

O milagre da multiplicação inicia no colocar em comum os pães e peixes, a organização da multidão em pequenos grupos, a reza de Jesus ao Pai, a benção e a distribuição do alimento (Mateus 14,19). Homens, mulheres, crianças todos saciaram a sua fome e ainda recolheram doze cestos de alimentos (Mateus 14,20). O recolhimento das sobras é um contraponto ao desperdício de alimentos que é tão comum em nosso tempo.

O projeto de Reino de Jesus passa pela partilha e distribuição justa da comida, da terra, dos bens. No Reino anunciado por Jesus às famílias brasileiras, palestinas, israelitas, africanas, americanas, asiáticas, europeias e qualquer outra o alimento deve estar em todas as mesas. Para Jesus todos os povos são povos de Deus, pois ele não faz acepção de pessoas e de nações (Atos dos Apóstolos 10,34-35). O pão partilhado é sinal do Reino de Deus. A cidade Belém significa casa do pão. O nascimento de Jesus em Belém é sinal de esperança ao povo faminto (Miqueias 5,1). “Dai-lhes vós mesmo de comer” foi à missão dos discípulos que hoje é nossa, pois pão repartido deve ser uma prática cotidiana da humanidade.

Fraternidade e Fome já foi tema da CF em 1985, com o lema: pão para quem tem fome. Mas 40 anos depois percebemos uma triste realidade e a cada dia fica mais evidente a multidão que passa fome e que vive numa situação de insegurança e vulnerabilidade social. O papa Francisco em sua encíclica Fratelli Tutti, denuncia o escândalo da fome e chama o atual sistema: “As crises sociais, políticas e econômicas fazem morrer à fome milhões de crianças, já reduzidas a esqueletos humanos por causa da pobreza e da fome; reina um inaceitável silêncio Internacional” (n. 29). E acrescenta “a fome é criminosa e alimentação é um direito inalienável” (n. 189).

No plano de Deus ou no seu Reino anunciado por Jesus não haverá fraternidade com fome. A fome gera mortes e lutos. A fraternidade passa pela mesa e pela população saciada. Com a CF de 2023 a Igreja Católica assume reflexão e mobilização socioeclesial para erradicar a fome, porque o plano de Deus é de vida em abundância (João 10,10). Em face a realidade que vivemos com milhões de famintos resta-nos abraçar e entrar na Campanha. 

Sobre o autor

Miguel Debiasi

Frade da Província dos Capuchinhos do Rio Grande do Sul. Mestre em Filosofia (Universidade do Vale dos Sinos – São Leopoldo/RS). Mestre em Teologia (Pontifícia Universidade Católica do RS - PUC/RS). Doutor em Teologia (Faculdades EST – São Leopoldo/RS).

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