Ecumenismo e Libertação
O título desta postagem é uma homenagem a um livro que li pela primeira vez no final da década de 1980, quando cursava a Graduação em Teologia. Era a época da disputa em torno à Teologia da Libertação, um movimento de intelectuais cristãos que queria pensar a fé a partir das lutas dos povos do continente para superar a pobreza e a opressão. A Teologia da Libertação, desde as suas origens até hoje, sempre se entendeu como um movimento transeclesial, ou seja, constituído por homens e mulheres que, identificando-se com uma comunidade cristã específica, não fica restrito a esta ou aquela comunidade, mas pensa o cristianismo no seu todo, para além dos limites institucionais. Claro que, sendo o Brasil um país naquela época ainda majoritariamente católico romano, a tensão se expressava de maneira mais viva dentro da Igreja Católica Romana. O “caso Leonardo Boff” tornou-se emblemático desta disputa pelo sentido da fé no contexto brasileiro e latino-americano.
O autor do livro “Ecumenismo e Libertação” que motiva esta reflexão é o teólogo uruguaio Júlio H. de Santa Ana. De formação metodista, Júlio fez-se, por opção, amplamente ecumênico e, como tantos uruguaios de seu tempo e de hoje, girou pelo mundo a serviço da causa em que acreditava, a unidade das Igrejas e do Povo de Deus. Atuou em vários organismos ecumênicos internacionais, inclusive no Conselho Mundial de Igrejas.
Neste livro que é, sem dúvidas, um clássico no tema, o autor discorre sobre as causas das diversas divisões que, ao longo dedois mil anos, afetaram a desejada unidade do Povo de Deus. Houve causas dogmáticas, litúrgicas, canônicas, culturais, políticas, econômicas, pessoais... Muitas divisões com muitas causas e muitas causas em cada divisão. O cisma do séc. XI, por exemplo, que separou latinos e orientais, não teve como única causa a discussão sobre a procedência do Espírito Santoapenas do Pai ou do Pai e do Filho. A disputa de poder entre o Império Bizantino, o Papado e as repúblicas italianas também influíram no triste desfecho. Do mesmo modo, não foram as “Cinco Sola” de Lutero que suscitaram as rupturas na Igreja do Ocidente. Sem os interesses econômicos e políticos dos príncipes alemães, de Carlos V e dos Papas Imperadores e de sua corte, a crise das reformas não teria tão triste desfecho.
Mas a razão que sempre me faz voltar ao livro de Júlio de Santa Ana é a parte conclusiva em que, olhando o presente e as perspectivas futuras para os que sonham com a unidade das Igrejas e do Povo de Deus, o autor, citando Emílio Castro, também uruguaio, metodista e apaixonado pelo ecumenismo, afirma que Ecumenismo é Solidariedade. Solidariedade na busca do Reino, solidariedade no serviço aos pobres.
Para Emílio e para Júlio, assim como para muitos outros cristãos e cristãs que buscam ser fieis ao projeto do Reino de Deus, a unidade cristã se constrói não apenas na discussão sobre princípios dogmáticos, litúrgicos, canônicos, sacramentais, ministeriais... O que une ou separa os cristãos, é a atenção que é dedicada aos pobres. Isso não é novo. É muito antigo. Já Paulo o afirmou na Carta aos Gálatas. Segundo o Apóstolo dos Gentios, para quem tem fé no Deus de Jesus, tudo é relativo, menos o cuidado para com os pobres. Estes nunca podem ser esquecidos.
Esse é o princípio que está hoje por trás de todas as discussões em torno à Campanha da Fraternidade Ecumênica 2021. Há cristãos que se preocupam com os pobres e há cristãos que, com argumentos supostamente religiosos, justificam sua desatenção para com os preferidos por Jesus Cristo. E isso não é privilégio desta ou daquela Igreja. São posturas que ultrapassam as barreiras confessionais e provocam uma divisão em todas as igrejas.
É a divisão mais radical, mais que as do séc. V, do séc. XI e dos séc. XVI-XVII. Uma divisão que recoloca o cristianismo frente à questão fundamental que temos sempre de novo responder: quem é o Deus em que acreditamos? É o Deus de Jesus que dá a vida para que todos tenham vida ou é um Baal que exige o sacrifício da vida dos pobres?
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