É tempo do “nós” ...
O pensamento moderno buscou colocar no centro do mundo o ser humano, propriamente, o “eu”. A autorreferencialidade do “eu” não é um fenômeno moderno, mas foi empoderada. Na autorreferencialidade o ser humano coloca-se como a verdade absoluta, critério supremo. A pandemia da covid-19 deixou claro que é preciso superar o tempo da autorreferencialidade do “eu”, como nunca a humanidade precisa do tempo do “nós”, do pensar coletivo e planetário.
O sociólogo alemão Niklas Luhmann (1927-1998), considerado um dos principais pensadores das teorias sociais do século XX, em sua obra Sistemas sociais, emprega o termo autorreferência. O emprega para distinguir as diferentes sociedades e que, antes, a sociedade moderna, em virtude das transformações pelas quais passou, deveria ser entendida como sociedade mundial. A partir do estudo de Luhmann, a autorreferência tornou-se um paradigma de leitura social crítica da sociedade, buscando descrever sua estrutura, sua ideologia e suas diferentes perspectivas.
Em época de mediação digital, portanto, de nova perspectiva de sociedade e de civilização, as pessoas enxergam apenas a sua imagem refletida na autorreferência. Por ela constrói-se uma imagem que não condiz com a vida real da pessoa. Pesquisas revelam que milhares de pessoas vivem sós e desconhecidos uns dos outros, até mesmo de seus familiares próximos. Há um esforço descomunal para construir-se uma imagem pública impecável e fatalmente não genuína, verdadeira. A mediação digital exerce esse fascínio em todas faixas etárias.
Outrora deu-se ênfase ao narcisismo, conceito criado pelo neurologista e psiquiatra austríaco Sigmund Freud (1856-1939), que adotou o termo a partir do mito grego de narciso. A origem da palavra narciso em grego significa entorpecimento, torpor, inconsciência. A palavra narcótica indica qualquer substância que altera os sentidos, produzindo narcose ou inconsciência. O indivíduo narcisista assume a imagem do seu corpo próprio como sua e se identifica com ela, no fundo, eu sou essa imagem.
Livrar-se do fascínio pela autorreferencialidade é imprescindível para uma teoria social crítica. A teoria social crítica tem longa trajetória e renova-se pelas sucessivas gerações de teóricos sociais alemães com base na tradição marxista da Europa Ocidental, do qual, colabora a reconhecida Escola de Frankfurt. Para teóricos de Frankfurt uma teoria social crítica se distingue de uma teoria tradicional pela emancipação humana da escravidão e pela ação libertadora.
A primordial tarefa da teoria social crítica é a desconstrução da ideologia dominante, principal obstáculo para a libertação humana. Nessa abordagem social crítica participam renomados teóricos como Herbert Marcuse, Theodor Adorno, Walter Benjamin, Erich Fromm e Marx Horkheimer. Também colaboraram de forma diferenciada os teóricos György Lukács, Antônio Gramsci e Jürgen Habermas. Todos influenciados pelas ideias de Karl Marx e Sigmund Freud.
A era de mediação digital cria estruturas sociais, ideologias e fortes impulsos para a autorreferencialidade. No autorreferencial está a redução do outro a um objeto usado para a construção de um horizonte social do “eu” como ser absoluto. A sociedade fundada no autorreferencial de si, não reconhece o outro na sua alteridade e fortalece um sistema social que impede que milhões de seres humanos expressem suas ideias, desejos e vontades libertadoras.
Esta realidade social e humana também está presente na Sagrada Escritura. Em suas primeiras páginas narra a questão da fragilidade humana, a presença do mal é uma constante. A autorreferencialidade está presente na família de Adão e Eva, nomes que representam toda a humanidade de todos os tempos. Adão e Eva foram são infiéis a vontade de Deus (Gênesis 3,17-14), seus filhos reproduzem a mesma fragilidade humana, a ponto que Caim matou seu irmão Abel (Gênesis 4,8-16). O motivo da desobediência a Deus e do fratricídio é a autorreferencialidade, a busca pela autonomia e a inveja, o pior dos pecados capitais. Na autorreferencialidade o ser humano vive só. Esconder-se em sua própria caverna, a solidão, definitivamente à morte.
A modernidade que não capacita com formação crítica seus indivíduos leva-nos acreditar na superação da superstição da história antiga, os tabus morais, as crenças mágicas, fé como talismã. Enquanto a sociedade moderna renova os sistemas opressores e promove a ascensão da autorreferência. E, esta, personalizada e seletiva tornou-se um fator de lucrar, impor ideias, modas a outros que estão sarjetas ou humilhação social.
Esta problemática social se faz presente em todos os espaços da sociedade. No campo eclesial a superação da autorreferencialidade é uma caminhada de Igreja viva no Evangelho, proposta do Papa Francisco apresentada na encíclica Evangelii Gaudium – a alegria do Evangelho. A fidelidade ao Evangelho é a sabedoria que contrapõe todos que colocam seu critério de verdade em si mesmos, naquilo que pensa.
No campo econômico a superação passa por políticas públicas nacionais e internacionais que diminuam a distância abismal entre as classes sociais e entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Para tanto, a economia precisa voltar-se para as camadas populares e países mais carentes. Isto exige mudança de mentalidade dos homens do poder e do sistema econômico vigente.
O tempo do “nós” exige sensibilização, conscientização, mobilização, despertar a consciência da realidade social a que estamos submetidos. As realidades sociais e humanas justificam as razões para fazermos essa transição do “eu” para o “nós”.
As crises econômicas, políticas, sanitárias, ecológicas, climáticas, sociais do século XXI são verdadeiros sinais que é urgente pensar a sociedade do “nós” todos, independente de credo, etnia, cultura, nação, posição social... Há tempo que as teorias sociais críticas apontam para esse rumo, para o mundo do “nós”, no sentido mais amplo do coletivo e do planetário.
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