E o que não imaginamos, etc.
Às vezes basta pouco para dar um salto no mundo paralelo. Vejo uma gralha sobre um telhado e o pensamento voa para outro espaço e outro tempo. Vou a Edgar Allan Poe: "Nunca mais, nunca mais!"
O sol se põe pálido: estamos no outono no hemisfério norte. As gralhas fazem festa, os estorninhos dançam em bandos no céu e as gaivotas fazem pose onde não há mais nenhum turista para fotografá-las.
Os pássaros me distraem e me carregam para o antigo mundo. Lá, eu passeava com a minha mãe pela cidade e explicava aquela iconografia que tanto surpreende os romanos, por desconhecerem os nossos laços com aquilo que eles já esqueceram. O popular Santo Expedito pisoteia uma gralha que traz no bico uma fita com a escrita "cras", ou seja, amanhã, e ergue uma cruz em que se lê "hodie", hoje.
Fico lembrando dos livros, dos passeios, do passado. Porque hoje é tudo novo e o amanhã ninguém sabe.
Italo Calvino brinca com o desconhecido: a lua desconhecida, o universo desconhecido, quando não podia imaginar que desconhecidos seriam os nossos dias. Falo de um conto que talvez não esteja entre os mais célebres, mas que me veio de repente à memória hoje. O título em português é: "Aposta quanto".
Há duas linhas que se cruzam na narrativa: a mais evidente é a da aposta diante do desconhecido. A outra é da narração da aceleração do tempo. Em síntese, a personagem Qwfwq desafia o Decano (k)yK em apostas contínuas, com o objetivo de passarem o tempo, já que não sabem nada do universo cuja evolução estão testemunhando.
Apostam que o átomo irá surgir, que uma estrela irá se formar, que surgirá a civilização da Mesopotâmia, que haverá um final de campeonato de futebol entre o Arsenal e o Real Madrid. Fazem apostas literárias e apostas sobre a vida de pessoas pelas quais teriam de esperar milhões de anos para verem nascer, já que as duas personagens antecedem o surgimento dos continentes, dos dinossauros e da espécie humana.
À medida que o tempo passa, aumenta de forma exponencial a quantidade de apostas. Qwfwq é otimista, o Decano (k)yK é tendencialmente pessimista. No início, Qwfwq leva vantagem: ele aposta no surgimento da vida, e a vida surge. Aposta nas estrelas, e elas se formam. A sua vantagem é pragmática, baseada na experiência.
Aos poucos, porém, os fatos sobre os quais apostam parecem mais distantes, são muitos e incontroláveis. A análise combinatória garante, por estatística, um reequilíbrio entre os desafiantes.
O final do conto, coerentemente, é uma pergunta sobre o ponto das apostas, numa altura em que os acontecimentos se acavalam, tornam-se ilegíveis, formando uma massa sem forma nem direção. "Onde paramos, Qwfwq?" - pergunta o Decano (k)yK. Algum leitor de Calvino poderia supor uma resposta e um ponto final: no caos. Calvino, no entanto, não escreve esta palavra, porque caos é o início, não pode ser o fim.
Calvino também não imaginava que no futuro com o qual ele brincava haveria um vírus mortal. A covid recolocou em discussão o conhecimento, os métodos, as propostas para solucionar os problemas. Os lúdicos dobraram as apostas. Os negacionistas também. Passam o tempo como se cada dia fosse a aurora do universo.
Contudo, há quem, como Qwfwq e (k)yK, prefira ser testemunha. Podemos assistir ao e o surgimento de um novo mundo sem bússolas, sem respostas prontas, sem epílogo certo. Depois de todas as acelerações que amontoam informações no breve espaço de tempo que a vida nos concede, talvez possamos emergir do desconhecido como quem sai de um labirinto.
E se nos movimentamos para não sair do lugar? Nesse caso, praticamos o voo do beija-flor, uma metáfora que acompanha a trajetória do protagonista do último romance de Sandro Veronesi, O colibri. Fazemos de conta que não estamos totalmente presos e controlados pelo vírus. Fazemos e refazemos os nossos passos todos os dias, com a ilusão de que podemos circular: retornar sempre ao mesmo ponto.
A que ponto estamos, se não conhecemos as trilhas do labirinto? Estamos perdidos, mas vivos, como brotos do amanhã. Temos dados, os germes de conhecimento. Se praticamos o ódio, somos vetores de violência. Se ignoramos os fatos, somos motores de aniquilação. (O sol se põe, a saudade bate, a lua surge no céu, os morcegos fazem revoadas. Eles não são passarinhos. Junto as sensações do dia, espero a noite e o que ainda não imaginamos.) Etc. Etc. Etc.
Só acredita realmente no futuro quem dá sentido às coisas que nem podemos elencar, mas que ninguém poderá impedir de serem sonhadas.
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