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Miguel Debiasi

O escritor inglês Aldous Leonard Huxley (1894-1963) afirmou: “a religião é o abismo da imoralidade”. A afirmação é provocativa. Instigante de uma reflexão. Há de se concordar que os cristãos não estão imunes dos contrastes éticos. Também, propagadores de contra valores ao Evangelho. A afirmação de Huxley desafia a teologia a refletir sobre os valores éticos que a religião cristã cultiva tarefa pertinente para nosso tempo.

A crítica à religião não é novidade contemporânea. Em todo percurso histórico a experiência religiosa foi objeto imprescindível e de grandes contribuições à civilização, mas também matéria de questionamento e de conflitos sociais, políticos, culturais e econômicos. A prática religiosa como qualquer ação humana está submetida às limitações culturais dos povos. A religião como obra humana carrega em suas entranhas uma variedade de impulsos espirituais e necessidades dos povos. Essa exigência humana gera um universo de valores frequentemente em contraste ao Evangelho, todos recorrentes às experiências sensíveis.  

Os valores morais não podem ser elucidados unicamente das experiências sensíveis, não estão limitados à existência humana temporal. Eles também dizem a respeito ao sentido último da vida, relacionados ao ser Superior. Estão associados à liberdade humana, inteligência ordenadora, as virtudes que dinamizam os indivíduos para o bem, rejeitam toda qualquer forma de violência, de autoritarismo e de absolutismo político, religioso, ideológico e econômico. Em nosso contexto no campo religioso trava-se uma verdadeira guerra ideológica e política entre cristãos, coirmãos na fé e não contra as desigualdades sociais, contra o ódio e contra a intolerância.    

William James (1842-1910), filósofo e psicólogo americano escreve: “a vida religiosa é inconfundível: ela põe os homens em contato com uma ordem invisível e muda a sua existência”. William refere-se propriamente a vida mística, algo que está para além da experiência religiosa vivenciada pela comunidade sensível, ou pelas Igrejas cristãs. Aquela vida mística que age ampliando o campo perceptivo, abrindo possibilidades até mesmo desconhecidas pela capacidade racional e pela evangelização cristã. Essa experiência mística nem mesmo poderia ser determinada pela teologia. O autor a considera como um acesso privilegiado, inacessível aos meios comuns, àquela potencializada por Deus nas ações, na razão e na alma que transcende o mundo sensível. Alcança um estado de vida mística que liberta a experiência religiosa do pecado, da tradição comprometida com o sistema dominante. 

Jesus de Nazaré denuncia a prática religiosa desvirtuada da ética: “ai de vós hipócritas” (Mateus 23,27-32). Ao referir-se aos mestres da lei e aos fariseus, Jesus expõe a hipocrisia e desvirtuamento da prática religiosa de seu tempo. Ao chamar os mestres da lei e fariseus de sepulcros caiados, por fora impecáveis, por dentro cheios de imundice, denuncia a religião adúltera e deturpada moralmente. Os líderes religiosos obrigavam o povo a obedecer a ritos, leis, normas, que aos olhos de Jesus eram manipulação. Atrás da falsa bondade, os mestres da lei e fariseus escondiam seus projetos perversos, usando da religião em benefícios de seus interesses. Jesus desaprova toda prática religiosa que não leva à verdade, à justiça e à conversão humana.

O neurologista e psiquiatra austríaco, Sigmund Freud (1856-1939), ao longo de seus estudos e prática psicológica, descreveu o que denominou “pulsão da vida”. A “pulsão da vida” manifesta-se, sobretudo na sexualidade e na fome. Em 1914 quando seus dois filhos se alistaram no exército para combaterem na Primeira Guerra Mundial, fato que abalou Freud, pai da psicanálise, a partir dessa data começou a usar a expressão “pulsão de morte”. O psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981), posteriormente de modo mais ordenado sistematizou a “pulsão da vida e de morte”, e contribuiu com Freud com duas afirmações: a) a “pulsão da vida” é endógena, ou seja, trata-se de uma energia que pulsa em cada organismo, ser vivo; b) no momento em que enxerga o mundo como pura exterioridade, como algo a ser adaptado a nossa existência, a “pulsão de morte” faz sua entrada. Então, para Freud e Lacan o ser humano convive com as duas pulsões: da vida e de morte.

O teólogo e historiador belga Eduardo Hoornaert, ao comentar a realidade religiosa e política brasileira com base nos escritos de Freud e de Lacan, escreve: a “pulsão da vida” reconhece como essencial o ditame: nós somos natureza, nela existimos e respiramos, e a “pulsão da morte”, pelo contrário, quer adaptar a natureza exterior ao que nós queremos. Esta “pulsão de morte” enxerga o mundo como pura exterioridade, isso leva à ideia de dominação do outro. A “pulsão da vida e de morte” se aplica a todas as dimensões da vida dos indivíduos, como de fato as teorias de Freud e Lacan estão amplamente aplicadas em psicoterapias individuais.

A eclosão do fanatismo religioso no Brasil, em boa parte, é atribuída a sua opção política partidária. A ideia de “pulsão da vida” e “pulsão de morte” ajuda a explicar o momento do país, onde cristãos apoiam projetos políticos antagônicos ao Evangelho. No Brasil como qualquer país do mundo ao longo de sua história, armas, legiões militares, generais do exército se transformaram em imperadores, presidentes, prepotências e dominação. O símbolo principal deste poderio - armas, espadas, canhões, carros militares e estrutura bélica, refletem a capacidade da “pulsão de morte”. Por meio desta simbologia de morte, apropriaram-se de territórios, de povos, de riquezas de toda espécie. Essa prática fortalece-se em território nacional com ênfase no discurso religioso.

Essa prática religiosa entorpece a consciência cristã e deturpa a moral. A imoralidade da religião sustenta o desmatamento da Amazônia, milhares de mortes de Covid-19, 30 milhões na fome, desigualdade social, intolerância, ódio, violência, armamentos e outras pulsões de morte. Eduardo resume a situação da imoralidade religiosa numa frase proferida pelo chefe maior da nação: e daí? Há uma “pulsão de morte” fervendo no campo religioso cristão. Essa imoralidade religiosa cristã será superada por uma forte “pulsão da vida”. A crítica de Huxley é um profético alerta aos cristãos brasileiros “a religião é o abismo da imoralidade”. Cabe-nos libertar a religião cristã para que os cristãos por amor aos coirmãos na fé colaborem mais com o projeto do Evangelho, que todos tenham vida em abundância (João 10,7-10). Nossa fé é vida. A missão de Cristo é a vida.

Sobre o autor

Miguel Debiasi

Frade da Província dos Capuchinhos do Rio Grande do Sul. Mestre em Filosofia (Universidade do Vale dos Sinos – São Leopoldo/RS). Mestre em Teologia (Pontifícia Universidade Católica do RS - PUC/RS). Doutor em Teologia (Faculdades EST – São Leopoldo/RS).

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