Bom dia, senhora
- Bom dia, senhora, quer sentar?
Aos quarenta e oito anos, todos os adolescentes me consideram uma potencial tia, que merece lugar no ônibus.
- Bom dia, senhora, o que deseja?
Em uma loja ou em qualquer tipo de estabelecimento comercial, o meu provável poder aquisitivo desperta imediata deferência.
- Bom dia, senhora, responda a algumas perguntas.
No consultório médico, na universidade ou em outros contextos formais, o pronome de tratamento estabelece a distância e marca a intangibilidade do interlocutor.
- Bom dia, senhora...
Dito com ambiguidade, o cumprimento elimina as barreiras de qualquer contexto, formal ou não.
- Bom dia, senhora, o que tem o menino?
Ao lado de um filho, toda mulher envelhece e todo cabelo natural acaba na mira da desconfiança.
- Bom dia, senhora, bom trabalho.
Quando ouvida no início da jornada, a saudação tem gosto de hierarquia e muitas vezes de desigualdade e injustiça em relação ao potencial de cada pessoa.
- Bom dia, senhora, não pode ficar aqui.
A saudação pode assumir uma aparência de cordialidade para em seguida mostrar as garrinhas de autoridade. E, muitas vezes, de autoritarismo.
- Bom dia, senhora, tenha a bondade.
Saudar também pode ser uma acolhida.
- Bom dia, senhora. Pois não.
Cumprimentar pode ser um convite ao diálogo.
Mas o mais marcante "bom dia, senhora" ouvi aos vinte e seis anos. De repente, não apenas percebi que a juventude acabava, como entendi o conceito de lugar social - ainda que o espaço que ocupemos seja transitório, precário, efêmero. Quando entramos pela porta da frente e não pegamos o elevador de serviço, somos senhoras, independentemente da idade. Entramos na engrenagem geradora de desigualdades, de discriminações, de castas, que como efeito colateral reitera o machismo, o racismo e o classismo da nossa sociedade. Querendo ou não, somos figurantes desse teatro de horrores.
Talvez tenham sido as férias, consteladas de pessoas gentis (e servis), talvez tenha sido uma comédia chilena hilária, com cuja protagonista me identifiquei totalmente - pelo mau humor, pela ironia, pela acidez -, talvez tenha sido a memória de um país em que as pessoas sorriem para não perderem o emprego: a verdade é que eu sentia falta de casa. Sentia saudade da vendedora de poucas palavras, com a resposta pronta (nem sempre acomodante), e capaz de mandar o cliente embora para cumprir o horário do fechamento da loja. Sentia falta de quem acha que o cliente nem sempre tem razão e me dá bom dia livremente. Apesar disso, sei que aqui também, neste lugar que escolhi e que amo, a liberdade rareia e a submissão avança, seguindo a onda da grosseria, do medo, do ódio e da percepção de que agregar-se aos que sobem com a escada rolante do populismo oferece vantagens pelas quais vale a pena perder a reputação, os valores e um pouco da própria identidade.
P. S. A comédia chilena se chama "Se busca novio... Para mi mujer" (Chile/Argentina, 2017), de Diego Rougier. Trata-se do remake de uma versão argentina rodada em 2008 por Juan Taratuto, e que possui também uma versão mexicana, realizada em 2016 por Enrique Begne.
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