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Aquarela de letrinhas

Gislaine Marins

Água - vai do amarelo ocre da areia ao azul escuro, passando pelo celeste.
Bosque - meu filho, que não tem noção de tamanho, pediu para explorar a floresta. Eu corrigi: é um bosque, um grande bosque de pinheiros mediterrâneos, mas não é uma floresta.
Casa - os toscanos, que usam esta palavra, como os italianos e os falantes de português, pronunciam o "c" inicial como o nosso "r" gutural. Para nós soa como "rasa". É uma coisa profunda, visceral. Os toscanos se orgulham muito de terem dado Dante à língua italiana, mas também se orgulham do que não deram: a pronúncia do "c", por exemplo. Os toscanos habitam a língua que falam.
Dúvida - quando não sei se uma pessoa está falando francês ou alemão, deduzo com complacente dúvida que fala holandês. Concluo que a dúvida é a arte da compreensão. Se não compreendemos os outros, compreendemos os nossos limites.
Escola - a pobre menina da casa ao lado passa as tardes fazendo as tarefas da escola. Como se a atenta observação das ondas não fosse tarefa para físicos, filósofos, matemáticos e poetas.
Feriado - o feriado italiano por excelência é o ferragosto, as "férias de Augusto". A tradição, que remonta à Antiga Roma, é festejada em todos os lugares do país, de preferência com melancia. Quase ninguém lembra que, segundo o calendário oficial, o 15 de agosto é dia de Nossa Senhora da Assunção.
Girassóis - a maioria dos girassóis pendem ressequidos, virados para o último pôr-do-sol antes do verão, esperando que os agricultores retornem para colher as sementes e inaugurar o outono.
Harmonia - encontrei a sepultura de Italo Calvino em Castiglione della Pescaia. Uma laje com dados essenciais: local e data de nascimento; local e data de morte. Nenhuma frase de efeito, nenhuma cruz. A praia estava cheia, os bares estavam cheios, a cidade estava cheia. Poucos metros fora dos muros: arrastei minha cunhada para o único lugar cheio de silêncios. Encontramos mais duas senhoras perdidas, que agradeceram pela nossa indicação para chegar ao túmulo. Uma delas vinha porque tinha usado Calvino na sua tese. A outra era uma amiga. Nada como os amigos, para compartilhar silêncios nas tardes de verão.
Ilha - quando nos aproximamos do Giglio, o mar ganha reflexos prateados. Mas o nome da área, que lembra a prata, não tem nada a ver com isso. A cor do mar é matéria para poetas e guardiães das águas.
Jogos - fazem várias brincadeiras: com bola, raquete, baldinhos,  bolinhas de gude. Crianças são benvindas. Cachorros também. Nenhuma das três coisas são óbvias e são ainda mais raras acontecerem na mesma praia.
Litoral - uma curva de areia e sal enfeitiça as nuvens, Marte exibe no céu o seu vestido mais brilhante. Muitas árvores, poucas luzes e a noite, de repente, estrela-se.


Milaneses - de nascimento ou de adoção, os milaneses são muitos: só falta o metrô aqui, na beira da praia. Chinelos em vez de gravata; biquíni em vez de salto alto. Quando até vizinhos se encontram na mesma praia, negando que tenha ocorrido organização prévia, os turistas do centro e do sul, vítimas de geografias caóticas, tendem a acreditar em um destino secreto, matemático, milanês.


Noite - quem não sabe desenhar sonha.
Opiniões - enquanto nas redes as posições se dividem, mais do que a ponte desmoronada dividiu, um silêncio perturbador se esconde sob o guarda-sol. Talvez por respeito, talvez por temor, talvez por desânimo, as pessoas evitam o debate na vida real. Os festejos também foram tímidos, envergonhados, solenes, tristes.
Pescaria - três vezes por dia, o dono do bar recolhe os tocos de cigarro na praia com uma peneira para capturar peixes miúdos. A água está muito quente, poucos peixes se aventuram entre os nossos pés nas águas cristalinas.
Questões - parmesão toscano não existe. Não é questão de gosto, é de publicidade. O parmesão toscano é ótimo.
Razão - os que voltam para casa enganam o desejo, fazendo muitos planos, recordando muitos deveres, dando-se motivos razoáveis.
Sol - sol, sol, sol, sol.
Toscana - vacas, carne, salame. Os restaurantes oferecem pratos veganos. Os bares oferecem aperitivos veganos. O ar tem cheiro de carne na brasa.
Unicórnios - as reservas naturais não podem ser visitadas. Qualquer ser imaginário pode ser colocado lá dentro, sem ser incomodado ou contestado por aventureiros turísticos.
Vinhos - nem só de Chianti vive a Toscana.
Xenofobia - não presenciei nenhum caso de discriminação. Toda estatística inclui o fator sorte.
Zero - a praia se chama Infinito. É bem pequena. Porque o maior infinito está nas menores areias.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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