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A Comunhão eclesial exige à desclericalização

Miguel Debiasi

As reflexões conclusivas da I Assembleia Eclesial da América Latina e Caribe, fazem um chamamento à Igreja do continente: viver a comunhão eclesial. A comunhão eclesial é experiência e prática fundante da Igreja primitiva. Em meados do século XX o Concílio Vaticano II apontou para esta necessidade e hoje a Assembleia Eclesial renova esse desafio. O chamamento à comunhão eclesial aponta que outra Igreja é possível no continente latino-americano.

Em todo continente latino-americano as consequências da pandemia covid-19 ficaram evidentes no crescimento das desigualdades sociais onde milhões de empobrecidos foram duramente penalizados. A pandemia escancarou as tamanhas desigualdades econômicas, políticas, sociais e em muitas situações os acessos aos recursos não foram possíveis de forma igualitária. Nesse momento, considerado pós-pandêmico, desencadeia-se uma realidade em todo continente de reconstrução e entreajuda de estados, pessoas, instituições, comunidades, povos, etnias e outras.    

Se a pandemia promoveu um distanciamento social, esfriamento de relações comunitárias e reclusão humana faz-se necessário um contra movimento, o da vida comunitária. Se com a pandemia valorizou-se os encontros não presenciais e entrou-se numa outra realidade de contatos virtuais, hoje isto é insuficiente para a vida social. A vida virtual fortaleceu-se por caminhos que vão na contramão de um processo social e comunitário e a maioria das instituições buscaram responder seus desafios através de plataformas digitais. Nessa modalidade a vida comunitária social, humana, cidadã, governamental, ficou extremamente fragilizada.

Parece ser muito importante para a Igreja, por se tratar de uma instituição e comunidade, que historicamente foi referência na América Latina de vida de comunhão, enfrentar essa realidade de pouco espírito de comunhão. A comunhão é a normativa para todos os trabalhos eclesiais e pastorais da Igreja, como para realizar os Concílios, Sínodos e Assembleias. O Documento Preparatório do Sínodo 2021: por uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão, argumenta em favor da maior comunhão. A comunhão eclesial é a base de uma boa eclesialidade. O Concílio Vaticano II deixa claro que a comunhão vai além da colegialidade episcopal, que envolve todo o povo de Deus, os leigos, leigas, membros de vida religiosa consagrada e todos os organismos vivos da Igreja.

Há empecilhos que impedem a maior comunhão na Igreja. O clericalismo é um grande empecilho. No clericalismo há a ideia que o protagonismo eclesial e pastoral é atribuído aos ministérios ordenados. O protagonismo eclesial e pastoral está sob controle da Igreja, dos ordenados, das mãos ungidas pelo sacramento da ordem. Esta concepção constituiu ao longo dos séculos a clericalização da Igreja e de todas suas atividades e estruturas. Tal concepção e ideia impediu a maior comunhão entre todos os membros da Igreja povo de Deus, como compreende o Concílio Vaticano II.

A clericalização é um grande mal que persiste na vida da Igreja. A natureza da Igreja não é compreendida pela clericalidade, mas por povo de Deus. A desclericalização é a condição primeira para haver uma Igreja sinodal. O caminho de superação do clericalismo não se faz sem dor e sem labuta, pois a clericalidade foi constituída numa verdadeira cultura que está muito enraizada na história da Igreja. A clericalidade constituiu-se numa cultura problemática, onde ao redor do clero, dos ordenados, os leigos foram submetidos ao seu serviço. Há na clericalidade um status clerical e social, de privilégios, de ocupação dos primeiros lugares, das sobreposições eclesiais. As relações eclesiais entre clero e leigos apontam para uma submissão e dependência aos ordenados, aos ministros da ordem (Lucas 14.1.7-14).

A distinção entre os grupos de fiéis do povo de Deus, clérigos e leigos, indicada pelo Concílio Vaticano II não é uma questão de submissão e nem de sobreposição de um grupo sobre outro. O Concílio Vaticano II ao referir-se aos grupos de fiéis, acentua da indicação que cai sobre o batismo que todos receberam, como elemento comum e que todos são discípulos e discípulas de Jesus Cristo. Os ordenados são claramente definidos como “a serviço” do sacerdócio comum dos leigos e leigas, caracterizando-os como ministros ordenados a servir. A clericalização inverteu a ordem entre os grupos de fiéis do povo de Deus, porque os ministros ordenados são rotineiramente servidos por leigos e leigas, configurando-se uma relação de sobreposição.

Há um aburguesamento, uma elitização, um autoritarismo na vida clerical. Esta é uma problemática antiga e que permanece resistente, onde os servidores passaram a ser servidos, até nas pequenas coisas, convictos que estão servindo o povo de Deus. Esta cultura clerical produziu leigos e leigas que vivem ao redor do clero, que se clericalizaram e se acham superiores aos demais fiéis membros da comunidade. É muito comum ouvir dos membros do clero afirmações: meu povo, minha diocese, minha comunidade, meus leigos e leigas. Há uma posse. Inexiste a vida de pertença, de comunhão, de integrados ao grupo do povo de Deus.

A Igreja sinodal da comunhão exigirá a superação do clericalismo. Essa tarefa envolve a todos os membros da Igreja povo de Deus que passará por um processo de formação e de conversão eclesial e pastoral. Na formação, será preciso reconfigurar os seminários que hoje são laboratórios de clericalidade. Os seminários são verdadeiros incubadores da clericalidade. Isto fica evidente na linguagem, vestimentas, posturas, jeitos, enfoques formativos e estudos filosóficos e teológicos baseados em pedagogias e hermenêuticas que cultivam o clericalismo. Os jovens entram leigos nos seminários e saem clericalizados. Esta cultura é expressada nos paramentos da ordenação como os amitos, alvas, sobrepelizes, cíngulos, dalmáticas, casulas e outras vestes eclesiásticas. Os pronunciamentos dos ordenados são discursos cheios de elevação pessoal e sem compromisso com os pobres.

A comunhão como experiência sinodal vai exigir uma conversão eclesial e pastoral. O clericalismo não gera comunhão, porque não resulta numa convergência, em meio a um pluralismo do povo, ao projeto de Jesus Cristo, ao Reino de Deus. A vida cristã, o ser Igreja, é dedicar-se ao projeto de Jesus Cristo, o Reino de Deus, considerando todos os membros do povo de Deus protagonista dessa missão. Mais, a comunhão eclesial não se esgota em si mesma, na Igreja, mas é vivida como forma própria de estar presente no mundo, como fundamento do Reino de Deus, modificando o mundo para Deus. Sem desclericalização eclesial não há comunhão eclesial.

Sobre o autor

Miguel Debiasi

Frade da Província dos Capuchinhos do Rio Grande do Sul. Mestre em Filosofia (Universidade do Vale dos Sinos – São Leopoldo/RS). Mestre em Teologia (Pontifícia Universidade Católica do RS - PUC/RS). Doutor em Teologia (Faculdades EST – São Leopoldo/RS).

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